sábado, 26 de janeiro de 2008

Imagens da Graphic Novel Original: Azul Profundo



Ao final do capítulo 5, já nos aproximamos mais da obra original de Warren Ellis: Azul Profundo

Neste post estão sendo mostradas duas imagens dos quadrinhos, na qual o personagem Frank é o protagonista.

domingo, 20 de janeiro de 2008

CAPÍTULO 5: FRAGMENTOS DE UMA MESMA FACE

(...) DESVIO DE SINAL: EXPERIÊNCIA SENHOR NINGUÉM, LOCAL DESCONHECIDO, VISUALIZAÇÃO INTERNA: Qual a diferença de um sonho lúcido, para um sonho induzido? Até que ponto, temos o controle sobre nós mesmos? Afinal, qual é o nosso papel em meio a todo esse caos imaginário?

Vivo correndo em busca de respostas, em diversos lugares e com os mais variados tipos de gente. Investigo nesse mundo um sentido, ou uma razão para justificar meus atos. Fiquei frustrado com as ideologias libertárias, encontrando na loucura uma forma de libertação. Acho que de certa maneira gosto deste cenário absurdo, em que a razão não serve para compreender a realidade. Para sobrevivermos encontramos logo um molde de personalidade, como um disfarce da nossa loucura. Posso ser um médico, advogado, soldado... Não importa a função. O que realmente importa é a maneira em que interpreto o personagem dentro do “mundo palco”.

Gosto também de não ter a obrigação de ter uma opinião formada. Estar fora do jogo, observando esses seres patéticos tentando encontrar seu espaço na sociedade. Divirto-me com a desgraça alheia, sem ser precisar fazer parte desta comédia. Tudo bem pode achar que eu pirei e perdi a noção do bom senso. Fodam-se! Tenho noção de controle da minha vida e posso estragá-la como quiser. Pois “a vida lha trará poucos presentes. Se você quer uma vida, aprenda a roubá-la”. Não preciso de bom senso para ser o “Senhor Ninguém”. Posso ser onipresente, sem precisar dar uma de Deus. Saibam que nem eu mesmo me levo a serio. Curto o poder de ser múltiplo, não pertencendo a nada, sabendo que posso ser todas as vidas e nenhuma delas. Sempre procuro qualquer evento que me chame à atenção, algo extraordinário, que faça sentir-me vivo. Eu não procuro a perfeição, um padrão sistêmico, ou uma sintonia simbiótica com o meio. Apenas busco interagir invisivelmente nos bastidores e no “mundo palco”, sem precisar me prender a nenhuma causa.

As pessoas que eu observo, interpreto como personagens. São atores que seguem um roteiro induzido por aqueles que acreditam ter o controle desta realidade. Eles manipulam nossas percepções através de palavras e símbolos distorcidos. Se conseguirem controlar o significado das palavras, podem também influenciar as pessoas que as propagam. Usam palavras chave ou símbolos nas próprias frases que você ouve e nas situações que você assiste todo o tempo, para condicionarem você a responder de acordo com estes estímulos. Transformam você numa marionete, escravizando sua mente. É um poder de criar universos artificiais, onde acreditamos que seja a nossa realidade. Se eu quiser acabar com esta farsa, ficarei sem meu divertimento. Esta peça não pode acabar. As pessoas têm que achar o que fazer enquanto esperam a morte. Eu prefiro de ser um personagem, que não precisa ter uma função específica dentro da narrativa. Quero experimentar as inúmeras possibilidades de interpretação desta realidade artificial. Gostaria que vocês pudessem vivenciar tudo o que eu passei. Quem sabe um dia vocês deixam de ser espectadores passivos e comecem a interagir mais. Qualquer um pode ser o Senhor Ninguém...


(...) SINAL DE FORTE FREQUÊNCIA: EXPERIÊNCIA FRANK, DELEGACIA REGIONAL, VISUALIZAÇÃO EXTERNA: Dentro da sala escura do departamento de narcóticos, Frank faz um longo interrogatório ao mendigo Ismael, na tentativa de extrair informações em relação ao LD50. Cansado de tantos rodeios feitos nos discursos vagos do mendigo, Frank começa a pressioná-lo ainda mais.

- Não adianta enrolar... É assim que funciona o meu sistema, o meu joguinho. Você me conta o que eu quero saber... E eu prometo não arrancar seu pênis fora e enfiar ele na sua bunda.

Na delegacia, todos parecem estar ocupados com suas atividades. Fichas de arquivos, procurações criminais, processos judiciários, estão constantemente sendo retrabalhados, sofrendo inúmeras alterações, até tornarem arquivo morto. O mendigo Ismael era um dos poucos que achava que poderia viver invisivelmente na cidade. Ou melhor, sem documentos, ou qualquer coisa concreta que comprovasse sua existência. Aliás, a única prova é o seu direto envolvimento na manipulação da droga LD50. Sendo considerado o braço direito de Trent Wayman, o líder desta conspiração lisérgica. O LD50 desequilibra com a organização da cidade, onde as leis são ineficientes no combate ao tráfico. Frank não admite a ideia de a sociedade ter perdido a guerra contra o tráfico de drogas. E pretende lutar para no mínimo prender Trent Wayman. Nada pode para-lo do seu objetivo.

-Detetive Christchurch! Pare com isso! – Fala uma colega de trabalho, que o flagra arrancando os olhos do mendigo Ismael com uma caneta. O mendigo, no entanto parece não sentir a dor da tortura, por estar em outro nível de consciência. Com um riso sádico, Frank mostra-se cada vez mais sem o controle da razão, enlouquecendo cada vez mais nesta cruzada pessoal.

- Ele sabe onde está o Wayman... Ele sabe muito bem! Ele sabe! Ele sabe porra! – Em seguida recebe uma coronhada de sua colega, ficando um pouco tonto. – Oh deus, quando isso irá acabar!

Já faz um longo tempo em que Frank está perseguindo Trent, com se fosse sua sombra. Eliminar Trent Wayman do mapa não é uma missão simples, principalmente quando seu inimigo é um perfeito ilusionista. Trent Wayman não costuma deixar pistas, ou provas concretas de seus crimes. No entanto deixa pessoas viciadas, pela crescente histeria deste narcótico. Nem o tenente da delegacia se salva, como um dos muitos viciados na cidade. Se dependesse do tenente superior e de sua colega de trabalho Ângela, o caso Wayman estaria encerrado. Os fatos que Frank presenciou são bastante convincentes para investir melhor na caça aos traficantes do LD50. Porém o que interessa para todos na delegacia são provas materiais. Frank costuma relembrar para o tenente o estado mental destruído de todas as vítimas de Trent. O caso mais marcante foi do casal de viciados que pegou em flagrante, um deles era Christian e sua namorada Giulia. Christian estava muito louco quando Frank arrombou a porta do apartamento. Giulia estava deitada em um colchão imundo, tendo as contrações do parto sozinha. A situação era grave, fazendo com que Frank ajudasse a pobre garota a dar a luz. O detetive tentou fazer o máximo pela garota, enquanto Christian continuava parado, suando frio, com um olhar fixo para a vagina dilatada, temendo pelo pior para a criança. Lembrava-se com clareza do momento, inclusive o que falou para Christian: “Vai ficar parado e esperar seu filho morrer, seu imbecil... Nunca achei que você fosse um traficante do tipo irresponsável. Foi pegar justo uma vítima de estupro pra cuidar pro seu chefe... O que aquele infeliz vai fazer com esse bebê, vender, ou comer tua cria?”. Christian continuava imóvel, com lágrimas correndo dos seus olhos, em uma mistura de medo e raiva. Os gemidos de Giulia fizeram com que as lâmpadas faiscarem, emanando uma forte energia, quase queimando os aparelhos elétricos. Por fim, a criança sai da vagina de Giulia, acompanhado por uma forte hemorragia, não matando a mãe por um milagre que Frank não consegue entender. O bebê apareceu deformado e sem vida, fazendo Christian cair em desespero incontrolável ao ver tamanha aberração. O horror daquela cena emudeceu Frank. Em seguida sua visão ficou embasada, sentindo-se como estivesse saindo do corpo. A voz de Christian ecoava em sua cabeça: “O mundo não deveria ser assim... Não é Frank? Não está conseguindo entender? Essa busca não vai levar a lugar algum... Não consegue achar o Wayman, porque ele já deixou de existir”. O medo de estar errado enlouqueceu Frank, fazendo-o criar novos propósitos, novas estratégias, eliminando um passado fracassado para reconstruir um futuro de sucesso.

Todas essas lembranças de um passado quase esquecido ajudam Frank recompor sua razão, esquecendo toda a raiva que o fez arrancar os olhos de Ismael. Segue para fora da sala escura de interrogatório, indo em direção a sua sala de trabalho. Ângela encontra-o no corredor, contando que Ismael fora levado para um hospital e está fora de risco.

- Me diga como deve ser? O que eu faço em um lugar onde, o tenente é um viciado em heroína, o sargento revende drogas aqui dentro, o carcereiro é um tarado que vive abusando sexualmente dos presidiários novatos. E eu, como fico nessa situação toda? – Fala em um tom de desespero, enquanto Ângela o segue para dentro da sala de Frank.

- Os caras são uns escrotos... Poderíamos ter nos livrado deles há uns meses atrás e ter colocado um pessoal mais descente. Mas nada é como queremos. Somos obrigados a seguir regras que não se aplicam a nós.

- Ainda estou perdido nesta loucura. Eu me arrependo amargamente todo dia por ter entrado para os narcóticos. Acordo no meio da noite aos berros, sempre me questionando o que eu estou fazendo aqui. Gostaria de poder reverter todos os erros que cometi, voltar para o início quando ainda tinha um pouco de heroísmo babaca.

Frank sai da sala depois de um longo diálogo com sua nova ajudante, carregando consigo uma caixa com documentos sobre o LD50. A voz de Christian continua martelar sua cabeça, “ele já deixou de existir”, e fica intrigado com esta possibilidade. Logo em seguida, uma nova imagem do passado retorna em sua mente. Desta vez recorda de outra tentativa frustrada de encontrar o Wayman, mais precisamente em mais um local destruído por viciados. O sinal de néon na frente do local é um poucos detalhes que ainda se lembra. Fecha os olhos e concentra-se em suas memórias. Em seguida visualiza sendo acompanhado por um reforço policial, para invadir e prender os responsáveis de uma seita religiosa, que usava as drogas fornecidas por Wayman nos cultos. As imagens mesmo aparecendo sem ordem cronológica, vão fazendo sentido pouco a pouco sobre tudo que se passou. Recorda de quando entrou no local da seita e acabaram encontrando vários corpos dos fanáticos espelhados pelo chão, todos dilacerados misteriosamente por alguma força desconhecida. Os policiais vomitaram e passaram mal devido à cena grotesca e pelo cheiro insuportável. Frank começa a sentir enjoos ao lembrar-se da cena. Corre para o banheiro e vomita quando visualiza cada corpo destroçado pelo culto ao LD50.

Sem perder muito tempo, volta ao local do crime para coletar mais pistas sobre a misteriosa seita de Wayman. Estaciona o carro na frente do Café Miragem, reparando a mudança na fachada do local. Nota que o local havia voltado a funcionar novamente. Entra e repara que tudo está organizado, pessoas tomando café, discutindo literatura, nada que lembre o LD50. Procura o gerente do local, perguntando sobre as mortes dos vários fanáticos que frequentavam o local. O gerente começa rir de Frank e diz que nunca houve seita fanática durante todos esses anos. Não convencido, Frank insiste dando maiores detalhes sobre o caso. Mesmo assim não convence o gerente do local. Irritado com a falta de respostas, mostra seu distintivo de detetive e começa pressionar o gerente. Mesmo com os argumentos de Frank, o gerente nega todas as alegações, apesar da forte pressão do detetive. Frank ainda não satisfeito, volta à delegacia para buscar os registros e provas daquele acontecimento.

Em meio a tantos arquivos sobre o LD50, acha algo sobre o massacre do Café Miragem. Descobre que boa parte dos documentos havia sido alterada. As fotos estavam com a imagem deteriorada, como se tivessem passado um produto químico para remover o registro visual. Várias folhas de relatórios apagadas, ou com algumas palavras e frases desconexas. Desconfiado, abre mais arquivos e pastas sobre vários casos com LD50. Todos também apresentam os mesmos problemas. Frank começa enlouquecer. Busca em lembranças desconexas, uma forma de provar que o massacre havia existido e que não está vivendo uma alucinação como os demais.

Sai da delegacia apressadamente. Não se importa com forte a chuva, seus problemas são maiores que isto. Olha desesperadamente para as pessoas andando tranquilas com seus guarda-chuvas pela rua. Sente-se como um estranho fora do contexto real. Teme ser vítima de uma conspiração, em que ele serve de cobaia. Grita para o céu chuvoso; “O que vocês querem comigo! Eu desisto! Cansei e quero que parem com isso”. Um barulho de trovão vem como resposta. Sai correndo sem rumo, chorando em meio à perdição, quando encontra o Senhor Ninguém caminhando e observando tudo atentamente. Ignora o que viu, continuando caminhar cegamente. Porém o Senhor Ninguém não desvia sua rota por causa do detetive, o atravessando invisivelmente. Frank descobre que existe algo de errado com sua percepção da realidade. Decide caminhar para casa, desta vez observando tudo ao redor como o Senhor Ninguém. Percebe a realidade mudando ao seu redor. Prédios sumindo de vista, pessoas que não notam sua presença, mesmo quando consegue atravessar invisivelmente. As pessoas vão mudando de forma, quando são observadas com maior detalhe. Descobre muito mais elementos visuais que uma visão superficial não pode ter.

No seu apartamento procura por seus objetos estimados, ou algo que remetessem a uma lembrança antiga. Nada encontrado. Senta-se em sua poltrona e começa se acostumar com sua loucura, entrando no jogo insano de Trent. De repente a televisão liga sozinha, aparecendo imagens em chuvisco, e uma voz fala com ele.

- Há quanto tempo está limpo?- Diz a voz da TV.

- O suficiente para diferenciar uma alucinação de um estado de lucidez. - Responde sarcasticamente.

- Por que você não encerra tudo isso e volta para sua vidinha de detetive? -
Frank deixa de escutar a TV, para olhar a seringa com LD50 em cima de um criado mudo, ao lado de sua poltrona.

- Isto não estava aqui antes. - Frank desafia a voz televisiva, acreditando que tudo faz parte de uma alucinação.

- Esta seringa já te ajudou a esquecer dos momentos mais difíceis. - Começa provocar o detetive. – São as drogas, sempre foram elas. Consenso. Desconexão. A dose efetiva contra o LD50. A dose com a qual cinquenta por cento dos recipientes morrem, ou ficam vagando feitos moribundos até atingirem a lucidez que tanto procuram.

- É mesmo? - Pega a arma do seu bolso e atira na televisão. Ao explodir a tela, começa jorrar água para fora do aparelho. Todo apartamento fica inundado e Frank começa e se afogar. A seringa com a dose de LD50 fica flutuando por todo apartamento submerso. Frank tenta pegar a seringa para recomeçar tudo do zero, mas desiste e espera morrer por falta de ar. Aos poucos começa perder seus sentidos, percebendo seu corpo desaparecer juntamente com toda aquela alucinação. O que irá acontecer em seguida? Prefere não ter respostas. Sabe que está indo para um ligar diferente, onde não há mais começo ,nem meio e sem fim...


(...) DESVIO DE SINAL: EXPERIÊNCIAS DOUGLAS E HERMANO JONAS, ESTRADA, VISUALIZAÇÃO EXTERNA: Douglas está dirigindo para o seu trabalho, quando aparece um homem vestindo uma camisola de hospital, se jogando na frente do seu carro. Por pouco não provoca um grave acidente. O homem é Hermano Jonas, que logo vai entrando no carro de Douglas sem perder tempo.

- O que você está fazendo aqui?– Indaga Douglas com total espanto.

- Apenas obedeça ao que eu mandar. - Jonas saca uma arma e aponta para Douglas, que fica calado e resolve seguir as regras do sequestrador. - Antes de tudo, o meu nome é Hermano Jonas. Vamos para o farol, onde explicarei melhor o que está acontecendo. Saiba que isto faz parte do jogo. Não é por acaso que me enfiei na frente do seu carro. Tudo que vem acontecendo conosco existe uma razão.

- Não estou entendendo. Que jogo é esse que está falando?

- Deixa refrescar sua memória. Lembra-se dos nomes Ismael e Christian? Eles trabalham para o arquiteto deste jogo: Trent Wayman. Ele é o homem que nos prendeu neste mundo. Saiba que ele está nos testando dentro dos bastidores desta realidade.

- Isto tem algo a ver com a droga experimental LD50?

- Tudo a ver. Agora começo entender os propósitos de Wayman, quando percebi que estamos todos interligados. O LD50 nos conecta, faz com que vejamos o mundo de maneira diferente. Quebra todos os nossos conceitos de realidade. O mundo dentro do LD50 é um jogo comandado por Wayman, onde ele atua invisivelmente moldando as regras.

- Quer dizer que estamos dentro de uma ilusão?

- Foi o que eu pensei. Se fosse uma ilusão acordaríamos para uma nova realidade. Nossa mente é o que determina o que é real ou não. Porém essa percepção de realidade é moldada por agentes exteriores: Religião, mídia de comunicação, família, sociedade e outros fatores. O LD50 nos proporciona o verdadeiro livre arbítrio. A realidade pode ser moldada através de nossos olhares. Mas toda droga por melhor que seja tem seu efeito colateral. No caso do LD50, nos tira todo o nosso senso de realidade, colocando em um sonho lúcido, dentro de um universo atemporal. Nem eu mesmo sei, quando estou em um estado de lucidez, ou de loucura.

- Talvez explique o fato de estar preso no mesmo dia. Tudo acontece igual, apenas minha perspectiva acaba mudando com o repetir dos dias. Às vezes tento espiar meus erros, mas acabo voltando para o mesmo lugar. Um ciclo sem fim. Mesmo assim vejo que o mundo continua real quando estou lúcido, mas nada parece mudar.

- Descobri que essa ideia de que “um dia será tudo diferente”, não passa de uma ilusão de nossas mentes. Agora lhe explicarei tudo o que está passando nessa cidade. - Entram com o carro em uma avenida movimentada, com um forte congestionamento. - Este trânsito é perfeito para exemplificar nossa realidade. Todo mundo vive em uma rotina semanal, organizando suas atividades nos sete dias na semana, para depois começar tudo de novo. O que faz um dia ser diferente do outro? São as pessoas, que acreditam estar em um dia diferente do outro, a rotina semanal faz com que exista diferenciação entre os demais dias. É tudo cíclico, a semana como um dia tem começo-meio-fim, nossas mentes fazem com que isto ganhe continuidade.

- O que eu não entendo, se as pessoas transformam o mesmo dia em um novo tempo, por que comigo tudo parece tão igual?

- O efeito do LD50, é a melhor forma de você perceber sua realidade. Transforma os acontecimentos do nosso cotidiano, de uma maneira simplista: A repetição sistemática. Você acabou enxergando essa rotina como um dia que se repete exatamente da mesma maneira. A rotina da multidão acaba seguindo um padrão muito complexo, na qual enxergamos isso de maneira abstrata devido aos efeitos da droga. O problema do LD50 é que nossos maiores vícios, temores e traumas, acabam se materializando neste mundo proporcionado por essa alucinação induzida. Também esqueça sua noção de espaço e tempo, aqui a relatividade segundo Einstein toma proporções espantosas. Nosso cérebro não segue o mesmo processo que as demais pessoas no meio da multidão.

- Relatividade é algo que eu escutei de Ismael um pouco antes de tomar a droga. Lembro-me que estava xerocando um livro sobre teoria da relatividade e Ismael chegou ao meu serviço contando sobre essa nova descoberta revolucionária. “O tempo é você que constrói, é a sua verdade. Vivemos seguindo padrões impostos por relógios, que apenas nos escravizam, tornando nossas vidas tão mecânicas como o seu funcionamento. O tempo não é temporal: ele é virtualidade integral. Sem precisar misturar a certeza de um passado com o que seria a eternidade, um constante retorno”. Falou também sobre paradigmas, rituais e a iluminação através da quebra desses conceitos alienantes. Ele disse: “Eu vou lhe emprestar um livro que sempre carrego comigo: Manual de sobrevivência ao apocalipse, ou como não enlouquecer com a realidade. Saiba que sozinho não chegarás a lugar algum, por isso lhe ofereço meu caminho para a liberdade. Sem ajuda de Trent eu estaria tão perdido como você”.

- O que Trent Wayman quer nos mostrar é o caminho para iluminação. Por isso nos vêm preparando para o que está por vir. O jeito é entrar no seu jogo e seguir as pistas fragmentadas, ao invés de lutar contra tudo. Existe um segredo por trás de tudo. Por esse motivo temos que nos desapegar de lembranças materiais e emocionais. Não podemos seguir nenhum caminho e nos prepararmos para o pior.

- Então o que irá acontecer agora? Se não há nenhum caminho para seguir, para onde é que vamos?

- Descobrir mais sobre a realidade que nos acerca. - O carro sai da avenida e sobe um morro da onde tem toda a vista para a cidade. Param perto do Mirante de onde avistam o farol e o mar que o envolve.

- Aqui neste lugar é onde se descobre pistas maravilhosas. É daqui que eu observo as transformações da cidade. Inclusive mudanças relativamente interessantes. Está vendo o farol, praticamente ao leste da cidade? Um dia percebi que ele havia mudado de posição, ou se movimentado. Mas como um farol estabelecido em um lugar fixo pode se movimentar? Por que tudo o que está na terra está em movimento? Tudo depende do referencial tomado. Percebemos a realidade movendo em nosso redor, os prédios tomando formas diferentes, as pessoas mudando de estilo de vida, o cenário mudando de acordo com nossa consciência coletiva. Quando passamos por lugares já conhecidos através de imagens, o mapa destes territórios antecipa nossa vivência, ao tomar a forma virtual em nossa mente. Quando olhamos a linha do horizonte não vemos nada além. Porém um mapa imaginário pode se formar na nossa mente, indicando a virtualidade de algo que potencialmente existe, mas sem estar atualizado. Assim eu posso afirmar que estamos também numa sensação de horizontes virtuais. O mundo parece real quando vemos tudo do jeito que sempre foi, mas quando fazemos um esforço para enxergarmos além, tudo parece surreal, desconexo e alucinante. Saiba que existem mundos de potencialidades físicas, que a nossa mente não está preparada para assimilar.

- Nossa que papo de drogado. Acho melhor voltar para minha vida de merda, que aliás já estou me acostumando. Acho que esse Trent Wayman é mais louco e pirado que todos nós. Eu vi muita gente se ferrar por causa dele. Seus seguidores cometeram suicídio no Café Miragem, e ele espera a mesma coisa de todos nós. Na realidade ele não quer nos libertar, mas sim nos manipular em uma nova realidade. Eu não chamo isso de liberdade, e sim de absoluto controle. Prefiro fechar meus olhos e acordar de volta na minha vida, só minha!

- Você tem essa opção. Mas lembre-se que não nos encontraremos tão cedo. Essa oportunidade foi única, de acordo com as regras do jogo, iremos tomar caminhos diferentes. Quem sabe nos vemos no fim da linha. Por isso faça bom proveito de sua vida.

- É claro que farei. - Fecha os olhos e acorda no seu serviço novamente. Seu chefe lhe da um esporo e tudo volta acontecer normalmente. Desta vez com mais controle da sua percepção da realidade. Porém nada o impede de pegar o mesmo caminho e ser atingido pelo mesmo caminhão, acordando no mesmo que passou.

(...) NOVO SINAL ENCONTRADO: EXPERIÊNCIA CHRISTIAN, MINDCORP, VISUALIZAÇÃO EXTERNA: Christian trabalha na manipulação dos documentos de vários voluntários da cidade fictícia. Ele é o encarregado de dar ordem no caos de centenas de papéis contendo os nomes e suas respectivas funções dentro do narco espaço. Sua principal obrigação é mudar o conteúdo dos documentos ao mando do chefe Fausto Caligari. Todo o cuidado é pouco, quando se trata da manipulação de documentos. Alterar algo já existente requer muito talento e disciplina, para que tudo saia perfeitamente. Os voluntários não sabem que o narco espaço está em constantes mudanças, para criar melhorias no seu sistema. Consiste em alterar aquela realidade sem que ocorram maiores problemas. Ter os documentos alterados corretamente, significa facilitar o trabalho de quem trabalha nos bastidores. Isto é o máximo que vocês podem saber, por enquanto, como funciona a manipulação da ordem deste sistema.

Em uma gaveta de um arquivo, está uma pasta contendo os registros de acontecimentos recentes. Em uma folha está a informação “Detetive prende anarquista, evitando uma explosão no centro da cidade”. Ele sabe que existe outras versões para o mesmo acontecimento. O detetive Frank, assim como o suposto terrorista conhecido como Hermano Jonas, fazem parte de uma mesma experiência elaborada por Trent Wayman. Eles revivem o mesmo evento diversas vezes até que consigam os resultados esperados na pesquisa. Segundo os relatórios, todos os resultados foram insatisfatórios. Sua função no momento é apagar as informações arquivadas, sobre o detetive Frank. Trabalhar em um reboot, um recomeço para o detetive. Christian fica desconfortável, pois já foi ajudado por Frank uma vez e acredita estar em dívida de gratidão. Tenta então apagar algumas pistas não relevantes, para que ele não sinta que foi sabotado. Porém a ordem que recebeu é para apagar tudo, não podendo deixar o serviço incompleto. Busca outra solução. Pesquisando mais informações recentes, como a prisão de Hermano Jonas. Encontra várias pastas em diversos arquivos contendo o caso de Jonas, o louco revolucionário. Estão arquivados fotos de vandalismos e violência urbana, todas as fichas criminais, como também os relatórios de suas internações em manicômios. Hermano Jonas é uma pessoa que está sempre em discordância com as regras da sociedade, fazendo de tudo para quebra-las. Com toda a informação em suas mãos, Christian joga aos poucos todos os arquivos do terrorista na incineradora. No meio de tantos documentos a serem destruídos, existe uma foto de Hermano com Giulia, ambos vestindo roupas surradas. O que sua namorada estava fazendo junto com aquele terrorista? Procura nos arquivos de Giulia, descobrindo que os dois estiveram internados na mesma instituição psiquiátrica. No registro relata que Hermano havia ajudado na fuga. Procura com mais atenção sobre o diagnóstico psiquiátrico dos dois. Hermano é classificado como bipolar e Giulia esquizofrênica. Descobre outro fato curioso sobre Hermano, em que é considerado culpado das mortes no Café Miragem. O que realmente aconteceu, foi um suicídio em massa através de uma seita fanática que acreditava na salvação da alma com o LD50. Christian lembra-se que foi o encarregado de alterar as informações daquele evento. Foi manipulando os documentos da tragédia do Café Miragem, que Christian fez a queima dos arquivos onde está registrada a verdadeira identidade do Senhor Ninguém. Não consegue mais se lembrar daquela sua ação no passado, pois a política do serviço, sempre foi esquecer o que já foi alterado. Nunca deu importância para esta regra, mas sabe que agora precisa tomar cuidado para não prejudicar também a única pessoa que realmente se importa.


Quem fora o Senhor Ninguém no passado? A única informação que sabe, é que ele era uma pessoa com olhar crítico e distanciado da realidade. Em vários arquivos de pesquisa, estão fragmentos de estudo da mente humana, dentre elas está uma pasta com textos que desenvolvem um ensaio em torno da mesma condição comportamental do Senhor Ninguém. O que mais chamou a atenção de Christian, foi uma fita cassete com uma palestra do Senhor Ninguém. Coloca a fita no vídeo e em seguida a televisão liga. Aparece uma imagem com o logo de uma marca na tela. Depois de vinte segundos, consegue ler, MINDCORP. Um corte brusco mostra um auditório com um enorme palco oval, de onde aparece uma mulher de uniforme. A imagem está fora de foco, mesmo assim conseguimos ver parcialmente as pessoas e entender o que está acontecendo. Um homem de terno sobe no palanque, ajusta o microfone e começa a falar. Christian tenta identificar a pessoa, mas percebe que o único jeito é prestar atenção nas vozes, talvez assim encontre alguma pista.

- Hoje vocês terão a oportunidade de ouvir e fazer perguntas a um dos nossos monitores de vigilância. Ele é o melhor observador dos nossos experimentos feitos na MINDCORP. Suas descobertas nos ajudam a atuar na pesquisa contra o distúrbio social. – Fala o orador. Logo em seguida aparece a mulher de uniforme ao lado do Orador, ainda não identificada devido às imagens borradas na tela. – Antes que possamos iniciar o debate, passo a palavra para a doutora Ângela Lynch.

- Boa tarde! – Da uma leve tossida, arruma os papéis em cima do palanque e volta a falar. - Não é um segredo que estamos vivendo em uma cultura de autodestruição. Mais da metade da população é classificado com vários tipos de distúrbios nocivos a nossa sociedade. Com o intuito de evitar crises sociais, guerras civis e formações de grupos terroristas, a MINDCORP se insere como uma alternativa preventiva contra estas possíveis tragédias. Temos este estudo para readequar o homem a uma nova realidade, muito mais estável do que esta. Mas se não começarmos desde cedo, nada podemos fazer contra este "câncer" social. Testes estão sendo feitos e quem é melhor para nos dizer sobre isso... Chamamos nosso maior monitor. – Aparece uma figura no centro do palco, não conseguimos identificar se é homem, ou mulher. - Esta pessoa apenas será identificada como Senhor Ninguém. Notem que seus trajes são apenas um sobretudo e um chapéu preto. Poderiam reconhecer este homem na rua? Apenas chamaria sua atenção, mas como ele costuma andar disfarçadamente no meio da tantas pessoas, dificilmente seria reconhecido. Esta pessoa, a quem chamamos de Senhor Ninguém, tem o nome código usado para relatar secretamente o que sabe. – O Senhor Ninguém se aproxima do palanque.

- Para começar a palestra, quero deixar claro sob-hipótese alguma darei indícios que possam revelar minha verdadeira identidade. – O Senhor ninguém fala com a voz distorcida pelo microfone. - Eu não compartilho dos seus estilos de vida. Não posso me dar a esse luxo. Vou dizer o que faço como monitor da MINDCORP. Primeiro eu rastreio criminosos, viciados e insanos em cada ponto importante dessa cidade. Isso qualquer policial disfarçado faria, mas eu prefiro agir diferente. Observo cada um de vocês como potenciais candidatos para nossas pesquisas comportamentais. Procuro ver em qual contexto social em que cada um de vocês fazem parte. Olho com atenção o hábito de todos e percebo quanto estão envolvidos com esta histeria coletiva. Percebo qualidades e falhas em cada um, sem ter contato pessoal com ninguém. Eu apenas relato o que sei. – A imagem corta para a plateia, um homem se levanta e ergue a mão.

- Mas andando neste submundo, você não medo que algo de ruim lhe aconteça? – A imagem volta ao Senhor Ninguém.

- Apenas tenho medo de ser descoberto. Temo a reação das pessoas, após descobrirem que estão sendo monitoradas. Gosto de usar uma metáfora teatral que aprendi com um profeta de rua: “Os personagens não são mais os mesmos quando é derrubada a quarta parede. Eles sabem que estão sendo vistos e irão encenar suas vidas de maneira diferente, criando-se um vínculo, ou uma cumplicidade do espectador”. O que eu menos quero é criar vínculo com qualquer pessoa. Volto usar a metáfora teatral: Eu faço parte dos bastidores do “mundo palco”. O que realmente me interessa é entender seus conflitos. Os motivos que os levam a autodestruição. E talvez identificar o fascínio e medo de muitos em relação a esta nova droga no mercado, o LD50. – Faz uma longa pausa no seu discurso e encara plateia. - Como muitos de vocês sabem, os militares e seus agentes estão na luta em países que passam ser a fonte de fabricação do componente orgânico da substância LD50. Aparentemente a substância é extraída de uma pequena flor altamente tóxica. Acredito como solução inicial, que cada um de nós tem que fazer a sua parte. Eliminando a demanda por essa droga. Isto nos ajuda a rastrear os traficantes, fabricantes e fornecedores do LD50. Se nada for feito vamos cedendo até o certo limite. Não queremos que aconteça outro surto. Ainda existe solução para este caos, não podemos ficar acuados esperando a salvação.

- Volte ao texto que preparamos pra você. – Ângela interrompe o Senhor Ninguém, gerando desconforto na plateia, que começa a fazer um burburinho.

- O que eles querem é que vocês acreditem nesta palhaçada. Isto é tudo encenação. O meu discurso é decorado. – Senhor Ninguém começa a se exaltar. - Vocês jamais terão ideia do que se passa naquele submundo. A realidade seria muito chocante aos seus olhos, por isso preferem vivenciar através da experiência de outra pessoa. Sabem por que estou impotente contra essa situação? Porque é isso que nos fazem alimentar um vício cada vez mais alienante. Quando percebemos de nossa incapacidade, é que não há mais solução para mais nada. – Ângela o interrompe novamente.

- Vamos, faça logo esse discurso e acabe logo.

- Enfim... O LD50 é uma substância que traz o desespero, inquietude, mas que também o faz despertar. Isolamento e solidão. Ódio e suspeitas uns dos outros. Uma morte lenta da alma. Bom... Isso é tudo. – Todos aplaudem e o Senhor Ninguém desaparece. Um corte brusco mostra o fim da fita, com apenas o logo da MINDCORP na tela.

Pela primeira vez Christian sente que está na hora de modificar as regras do jogo. Deixando de apenas executar ordens, para usar as armas que tem em mãos, na tentativa de salvar a todos os envolvidos na conspiração de Trent Wayman. Sabe que é necessário interferir diretamente na vida de todas aquelas pessoas, indicando os caminhos certos, fazendo todas as conexões entre eles. Sua vida está em risco, mesmo assim resolve ter uma atitude. Como o próprio Senhor Ninguém disse: “Ainda existe solução para este caos, não podemos ficar acuados esperando a salvação”.

domingo, 1 de abril de 2007

CAPÍTULO 4: BURACOS

CAPÍTULO 4: BURACOS


(...) SINAL RECONECTADO: EXPERIÊNCIA DOUGLAS, VISUALIZAÇÃO INTERNA: Quando era criança, gostava de brincar no bosque perto de casa. Não era um bosque qualquer e sim um lugar especial. Parecia um labirinto com inúmeros caminhos que se bifurcam em um determinado momento da caminhada. Sempre existia a possibilidade de poder criar o próprio trajeto. Podia avançar ou retroceder no caminho, como uma maneira de experimentar algo diferente em cada jornada. Eu considerava este bosque um lugar calmo e agradável, o mais próximo que pude chegar de um paraíso. Nestas caminhadas pelo bosque, comecei apreciar todas as formas de vida. Expandi minha consciência naquele espaço pacificador e transcendental. O bosque era o meu meio de me desconectar com o mundo ordinário, para descobrir o meu universo interior. Ás vezes esquecia quem eu era só para poder ser todos os heróis imaginários de um mundo em perfeito equilíbrio. Lembrava-me do circo, com todos aqueles palhaços brincando de ser feliz em um mundo sem regras, onde tudo era possível dentro do picadeiro, assim como aquele bosque que também tinha seu lado mágico.

Tudo mudou quando surgiu um enorme buraco perto da área de preservação. Ninguém conseguia me explicar o motivo de um buraco ter surgido de repente. Depois de um tempo interditaram o espaço “por motivo de força maior”. Eu acreditava que não se tratava de um buraco qualquer. Poderia ser mágico e misterioso como o da Alice. Era proibido cruzar a cerca de segurança, o que não me impedia de entrar no lugar todos os dias para me divertir sozinho. Todo aquele bosque não interessava mais ninguém. Continuou sendo o meu espaço livre para brincar e também esquecer meus problemas. Fui aos poucos ficando familiarizado com o lugar vazio, não havia o que temer. Imaginava que o buraco poderia ser uma cratera, igual aquela que exterminou os dinossauros, ou talvez um atalho para a china. A curiosidade era tanta que fui investigar o que era aquele buraco. Por distração acabei tropeçando e cai dentro daquele profundo vazio. Não lembro o que aconteceu depois disso.

Sei que acordei muito tempo depois, na cama de um hospital, com o corpo bastante arranhado, sem ter algum osso quebrado. Não sei como eu consegui sair de dentro daquele lugar. Só sei que após aquele acidente, comecei ver a realidade de maneira diferente. Perdi minha curiosidade em tentar descobrir os mistérios que existe no mundo. Inclusive não tive mais vontade de visitar o bosque. Não por medo, só que não via mais graça lugar. Todos os sentimentos que ligavam aquele lugar foram cortados. Por fim tornei-me um adulto frustrado e infeliz. Troquei o prazer de uma descoberta arriscada, para a comodidade de uma vida rotineira.


Já não faz muito tempo que eu consegui voltar ao bosque. Queria lembrar os melhores momentos que passei na minha infância. Agora o lugar está bem cuidado por seguranças. Só que havia algo de estranho. O buraco na qual caí não estava no mesmo lugar. Perguntei ao vigia do local, se havia tapado aquele buraco para cavar outro igual. O vigia começou rir de mim, dizendo que nada mudou de lugar naquele bosque, sempre esteve no mesmo ponto. Teria eu mudado minhas percepções de espaço, ou alguém está me enganando? Perguntei se ele conhecia a história de um garoto que caiu no buraco. Ironicamente ele disse que a história é tão popular, que virara lenda urbana. Existiam várias versões para o meu acidente. Uma delas era que eu havia sumido. Em outra versão eu transportei misteriosamente para outro lugar. Tem também uma versão que eu fui trocado por um sósia. Sem contar que existem os céticos, na qual acreditam que eu esteja morto. Jamais imaginaria que eu tornaria uma lenda. Fiquei fascinado por toda aquela especulação em torno daquele buraco. Parecia que havia entrado em um portal para uma nova dimensão.

Resolvi pular novamente para ver o que aconteceria comigo. Quando pulo, não consigo sentir meu corpo. Perco todos os sentidos e fico inconsciente. Acordo no meu quarto como se eu despertasse de um sonho. Voltei mais uma vez para minha vida medíocre e sem graça. Todas minhas ações são automáticas, fazendo com que eu me sinta cada vez mais como um robô. Quero encontrar uma maneira de escapar dessa realidade opressiva. Preciso encontrar um novo buraco...

(...) DESVIO DE SINAL: EXPERIÊNCIA FRANK, BECO, VISUALIZAÇÃO INTERNA: Eu matei Trent Wayman. Sim o bastardo está morto... Acho que tudo está acabado. Ainda faltam muitos detalhes para serem esclarecidos. Porém finalmente consigo sair desta fossa. O cadáver desse filho da puta merece ficar atolado bem nesse buraco.

A chuva leva embora minhas angustias e aflições. Fico parado no meio desse beco vazio, com a sensação de que algo está faltando. O cadáver disforme de Trent começa sumir na poça de lama, que pouco a pouco preenche o vazio do buraco formado por ele.

Fecho os olhos e procuro lembrar como matei o homem que venho procurando feito a minha sombra. Sei que tudo começou com uma pequena colagem de casos e histórias intrigantes, pois se eu mexesse em alguns detalhes, tudo continuaria fazendo parte do mesmo conjunto. Foi o que realmente aconteceu. Trent Wayman poderia ser um mero vilão dentro desta história. Ele era mais que isso. Foi à pessoa que mais sabia sobre tudo o que se passa por aqui. As pistas que encontrei não foram nada acidentais. Tudo foi premeditado dentro de um enorme esquema, em que ele sempre estava muitos passos a frente que qualquer um. Só que no final eu saí ganhando neste jogo. Ou seria mais um truque do Wayman para me derrubar? Talvez ele tenha se sacrificado na intenção de destruir o que ainda resta de lucidez em mim. Pode ser que dessa vez eu consegui agir como deveria. Ainda sinto que existe algo de errado. Lembro como espanquei o mendigo (Ismael), para conseguir informações do paradeiro de Trent. Mas ele poderia ter me despistado a mando do patrão. Acho que posso estar no lugar certo e na hora certa. Por pouco que Trent não conseguiu matar Giulia. Quando o vi comecei atirar cegamente. Por fim ele acabou caindo da janela do prédio da garota. Com o impacto da queda, formou um enorme buraco no chão desse beco imundo.

Abro os olhos novamente e vejo a silhueta do Senhor Ninguém na minha frente. Estou começando achar que ele é mais real do que qualquer coisa por aqui. Ele me entrega uma carta em um envelope pardo, contendo uma mensagem escrita por letrinhas recortadas de jornais e revistas. “Não há fim em sua caçada. Com a morte do corpo de Trent não significa que ele deixe de existir. Agora precisa transcender os limites de sua mente para descobrir uma nova forma de sair desse circulo vicioso. A busca pela origem do LD50 o levará a compreensão dos fatos, dando-lhe a lucidez necessária para recomeçar o caso”. Ainda fico confuso com o conteúdo da carta. Tento perguntar algo para o Senhor Ninguém, mas ele acaba sumindo junto com o cadáver de Trent. Será que estou sonhando? Se isto é um sonho, então porque eu não acordo? Preciso mudar essa situação. Quem sabe Christian seja a pessoa certa para ajudar a decifrar o mistério sobre o LD50. Preciso criar uma nova personalidade para sobreviver nesta nova etapa. Ainda posso manter meu nome, Frank Christchurch como parte imutável de minha identidade. Agora Christian será minha nova caça desse jogo. Espero que ele me leve para o caminho certo...

(...) INTERFERÊNCIA NO SINAL: EXPERIÊNCIAS HERMANO E ISMAEL, ESGOTO, VISUALIZAÇÃO EXTERNA: - Finalmente encontro com o grande terrorista, ou melhor, o sabotador de sistemas Hermano Jonas. - Fala o mendigo com total admiração.

- Quais são suas intenções para me arrastar até esse bueiro imundo? - Hermano olha para as paredes e o chão da central de saneamento da cidade, com completo nojo do local escolhido para aquela negociação. – Não tem lugar melhor pra gente ficar?

- Creio que aqui embaixo temos acesso imediato a qualquer canto da cidade. Estamos no melhor atalho possível.

- Pra mim é só um esgoto, com fezes e urina de todos os habitantes. Pode até ser um lugar isolado de todos os perigos de cima, mas é literalmente uma bosta ter que me submeter a isso.

- Não subestime esse lugar só pelo cheiro. Veja que aqui também encontram cabos de eletricidade e linhas telefônicas. Todo o centro de controle é aqui em baixo. E o mais importante são os túneis que ligam a todos os cantos deste sistema obscuro.

- Então é aqui que acontece o funcionamento de tudo? Sempre quis entender como funciona.

- Estamos precisamente no setor de manutenção sanitária, o centro de tudo. Os túneis estão ligados de uma forma completamente não convencional, dificultando qualquer tipo de sabotagem. Tudo aqui foi planejado de maneira bastante funcional.

- Não compreendo o que isso significa.

- Primeiro que neste lugar nada é o que parece ser. Liberte-se de conceitos empíricos, ou cognoscíveis. Pois tanto lá em cima como aqui em baixo, estes conhecimentos não servirão para nada.

- Ainda não estou entendendo o que você quer dizer. O que faz a funcionalidade deste buraco ter alguma relação para o que você quer me apresentar?

- É aqui em baixo onde são fabricadas as principais drogas vendidas na cidade. Inclusive o LD50. Hoje tudo está em torno do LD50. Estamos no único lugar que a polícia não teve coragem de procurar.

- Tudo o que eu vejo na cidade, são as pessoas se destruindo por causa do LD50. Sei que você também está envolvido nesta conspiração messiânica. Finge ser um profeta que conhece o caminho da libertação, quando você é mais maluco que qualquer pessoa envolvida.

- Por favor, Hermano não se faça de moralista ingênuo. Saiba muito bem que você também é uma das pessoas ligada ao LD50. Estamos conectados pela mesma droga.

- Não tente me iludir com suas alucinações... – Uma lembrança aparece de repente na mente de Hermano mostrando como executor de uma explosão no centro da cidade. – Isso não é verdade, tinha fatores políticos e disputa de poder por trás disso tudo... – Outra lembrança reaparece, com ele gargalhando por conseguir gerar o caos na cidade. – Você está me manipulando, seu louco! – Por fim visualiza sendo atingido pela explosão.

- Toda essa conspiração que você criou na cabeça o trouxe aqui. Da mesma maneira que fez uma aliança com Trent Wayman para conseguir destruir a fronteira da cidade.

- Quem inventou essa droga? Porque estamos perdidos no tempo e no espaço com essas alucinações do LD50?

- Acredito que o LD50 já existia antes de todos nós chegarmos aqui. Talvez a única pessoa que obteve o maior domínio das alucinações do LD50, foi Trent Wayman. No momento que ele conseguiu transcender os efeitos da droga, ele acabou virando uma figura onipotente neste jogo. Ele consegue manipular a vida de quem a usa. Isso talvez nos ajuda a evoluir nossa consciência, mas ao mesmo tempo acabamos enlouquecendo com essa realidade.

- Sempre soube que Trent Wayman, é quem possui o controle do funcionamento dessa cidade. Porém desconheço sua influencia para interferir nas nossas decisões. Não consigo ver ele como nosso títere.

- Saiba que somos induzidos por ele a fazermos aquilo que não planejamos. Trent apenas quer reorganizar o sistema a sua maneira e ajudar o próximo atingir a evolução que ele obteve com a droga.

- Mas quais são os seus verdadeiros objetivos com o LD50?

- Transcender essa realidade e conseguir a mesma iluminação que Trent obteve. Ele está tentando nos fazer entender que devemos interpretar esses elementos de maneira alegórica ou simbólica, para entrarmos em um mundo, que a medida normal do tempo não existe. Um mundo em que os relógios estão quebrados ou liquefeitos como num quadro de Dali. Por isso que venho buscando em cada um, uma maneira para encontrar a saída desse labirinto. Tento reformular o efeito alucinógeno do LD50, descobrindo novos sentidos percepções. Do mesmo modo que Trent Wayman desenvolveu toda uma alquimia revolucionária para se libertar do efeito original do LD50.

- Então o efeito da droga nunca é o mesmo?

- Não, a droga está em constante evolução, juntamente com o desenvolvimento da nossa percepção. É isso que a faz ser tão especial e ao mesmo tempo perigosa.

- Agora quero saber o quer comigo neste exato momento?- Hermano começa entrar no jogo de Ismael para conseguir subsídios para detonar a fronteira da cidade. – Sei que também quer o fim dessa fronteira, que serve de obstáculos para todos nós.

- Sim, exatamente chagaste aonde eu queria. Agora te mostro que somente entrando pelos caminhos subterrâneos, é que você conseguirá atingir seus objetivos. Mas atenção. Tenha seu propósito bem claro na sua mente. Pois o caminho te levará a perdição, colocando você novamente ao ponto inicial. Saiba que não haverá fim nessa missão, pois sua mente poderá te enganar do que realmente quer. E tome cuidado com seus pensamentos destrutivos, pois um simples colapso, poderá colocar em risco as vidas de todos os usuários do LD50. Eu elaborei um guia que poderá ser útil em sua jornada. Talvez com esse livreto você vá entender melhor o que estou querendo lhe dizer. – Ismael entrega o “Manual para sobreviver ao apocalipse” a Hermano Jonas.

- Parece um daqueles livros idiotas de autoajuda. – Hermano da uma folheada no “manual”. – Parece então que estamos todos conectados. Interessante essas técnicas de meditação. “Desenvolvendo habilidades de manipulação do tempo”, “Modificando a realidade” – Fecha o livreto e volta a encarar Ismael. - Bem, deixa pra lá. O que eu quero agora é conseguir uma nova saída.

- Não há uma saída, apenas uma ligação com outro lugar e tempo...

- Está bem. - Hermano já não começa levar tudo o que o mendigo propõe muito a sério. - Tentarei fazer o melhor possível.

- É o que veremos. - Ismael faz um sinal de desprezo, quando sabe algo ruim está para acontecer com Hermano.

(...) OUTRA INTERFERÊNCIA NO SINAL: EXPERIÊNCIAS CHRISTIAN E GIULIA, QUARTO, VISUALIZAÇÃO EXTERNA: Em um quarto de um apartamento sujo, estão encostados em paredes opostas, os jovens Christian e Giulia. Christian está pálido, com o corpo no limite da resistência física, tendo espasmos após terríveis alucinações. Enquanto Giulia está com a vagina dilatada, por abortar um feto disforme. Os dois aos poucos vão recuperando a lucidez e a percepção de seus corpos deformados. Giulia começa murmurar frases incompreensíveis, buscando algum contato com Christian.

- A tempestade já passou... A dor... Continua. Afinal o que estou fazendo aqui?

Christian começa perceber que existe mais alguém no quarto. Aos poucos nota que a garota está gemendo de dor. Porém ele nada pode fazer, por estar debilitado da mesma maneira que ela.

- Também não sei como vim parar aqui. - Olha para parede onde Giulia está encostada, encontrando uma marca de sangue escrito “LD50”. Lembra vagamente de alguns detalhes sobre o tráfico e as conspirações organizadas por Trent Wayman e o mendigo Ismael. – Acho que todo meu conhecimento e toda minha influência não serviram para nada... Não cheguei a lugar algum com isso... Aliás, só cheguei até essa fossa.

Giulia olha para baixo, percebe um cordão umbilical para fora da sua vagina, que está ligado a um feto deformado. Horrorizada grita apavorada, sem conseguir nenhuma reação em Christian.

- O que é essa coisa, que saiu de mim? - Olhando para Christian, como se ele fosse responsável por tudo o que aconteceu. – O que você fez comigo?

- Não sou culpado por essa situação. Não te conheço e muito menos faço ideia de como viemos parar por aqui.

- Ainda tem muito sangue na minha mão. Só que não consigo sentir dor alguma. – Giulia começa ficar mais lúcida e percebe que o feto abortado não passa de uma alucinação.

- Conhece alguma coisa sobre o LD50? – Procura descobrir se a garota tinha alguma ligação com tal situação.

- Sei apenas o necessário... O LD50 é um alucinógeno muito poderoso... Acho que não consigo me lembrar de quase nada.

- Acredito que existe alguém nos observando desde o início... Uma pessoa onipresente... É bem provável que somos cobaias de um jogo psicológico, ou algo parecido.

- Acho que também acredito nessa ideia. Só não acho que isto seja algum tipo de brincadeira. Estamos envolvidos talvez por vontade própria, ou forçados por alguém sem escrúpulos.

- Sei que existe uma forte conspiração envolvendo essa droga e quem as controla. De alguma forma sei que gostam de testar pessoas como cobaias, recrutando talvez para um propósito especial...

- Sempre estive sozinha, você é a primeira pessoa que está me dando atenção. - Giulia começa demonstrar afeto ao rapaz, que parece ter uma maior sintonia com Christian do que os demais que passaram por sua vida.

- Você sempre foi especial de alguma maneira... Acho que até agora ninguém conseguiu falar o quanto você é importante. – Christian sente uma empatia com a garota, percebendo que esse encontro não seja nada casual e que alguém estaria por trás disto tudo.

- Parece que estou sentindo o seu pensamento, estamos ligados de uma forma muito estranha. Por que você não chega mais perto?

- Não posso o meu corpo está paralisado feito uma pedra. Você ainda não consegue entender que somos apenas personagens de uma elaborada encenação? Estamos atados a cordas invisíveis, que nos movimentam feitos marionetes. O que nos restam, são os nossos sentimentos, e é isso que nos torna mais verossímeis aos outros olhos.

- Então este palco é uma prisão! Temos que nos conformar a tragédia de nossas vidas. Estamos rumando para o fim da linha, mesmo que fiquemos presos a este limbo, temos que arrumar um jeito de não perdemos o que nos resta de lucidez.

Uma voz fala para os dois relaxarem. Pois não há nada com o que se preocuparem com o momento presente. Então os dois fecham os olhos, adormecendo como crianças cansadas, entrando em um estado de total relaxamento e descontração. Na medida em que relaxam, seus corpos começam a flutuar por todo aquele lugar fechado. Sentem uma nova percepção do tempo, estendendo suas sensações para além de suas percepções sexuais. Suas mentes estão em outra dimensão da consciência, onde sempre estiveram eternamente conectados. Christian sente que o observador está voltando às atenções para ele, possibilitando uma nova percepção ampla da realidade.

- O observador sabe muito bem o que estamos pensando e sentindo. - Christian tentar alertar Giulia da perda de liberdade, porém ela nada se importa com o que está acontecendo. Ele anseia fugir de todos que o perseguem, ou que veem nele uma resposta. Entretanto ainda está ligado fortemente naquele espaço com Giulia, impossibilitando uma expansão desta experiência fora do corpo. – Parece que este observador está narrando os nossos atos, antevendo sincronicamente cada expressão ou sentimento demonstrado aqui. Ficando invisível aos nossos olhos, como um deus isolado em sua perfeição.

Finalmente Christian estabelece uma comunicação com interlocutor, o ser supremo que dita todas as regras daquela realidade alucinante. Os dois começam sentir essa presença externa, sendo aos poucos preenchida no formato de uma luz azul. Com medo, dão a mão um ao outro. Esperam pelo contato... Uma possível resposta, ou talvez uma nova paz para eles. Giulia pergunta o que acontecerá com eles. A voz responde que nada foi definido ainda e que apenas os personagens do jogo já foram colocados em ordem. Nenhum dos dois compreende, no entanto seguem adiante com a pergunta que tanto querem entender. Qual será a razão dos dois estarem tão ligados em perfeita harmonia? Em resposta vem o seguinte significado, “anima e animus”, os dois são como arquétipos complementares que fazem parte do inconsciente coletivo. Logo os dois olham um ao outro, percebendo serem como almas gêmeas, destinadas a perderem e reencontrarem dentro daquela realidade. Christian ainda insiste em saber por que usam pessoas como cobaias para interagirem neste jogo complexo. Em resposta veio algo bastante vago: “O sentido da condição humana, sem ater a explicações meramente convencionais”.

- O que será de nós agora Christian? – Giulia começa sentir impotente com medo do que poderá acontecer. – O tempo ainda é incerto para nós.

- Acho que agora nada podemos fazer. Temos que esperar por outra pessoa descobrir um novo caminho, para que possamos prosseguir com nossas vidas. - Os dois separam-se no meio daquela forte luz azul, esperando um próximo reencontro. O casal agora separado terá que encontrar os outros personagens que estão vivenciando a mesma situação. Cada um terá de se complementar no próximo, até evoluírem para outro estágio da consciência transcendental.